Anais do Encontro Regional Nordeste da ABRAPSO
VOL. VIII, 2022
PSICOLOGIA SOCIAL E PRÁXIS INTERSECCIONAL: DESAFIOS FRENTE À TAREFA DE RECONSTRUÇÃO POLÍTICA DO PAÍS
ISSN 2965-226X
A clandestinidade da memória
Bárbara Rocha de Araújo - Universidade de São Paulo
Resumo: Na ânsia de atingir um patamar de racionalidade que a fizesse ser considerada uma disciplina científica, a História introduz a linearidade e continuidade como lentes de leitura, a objetividade e o distanciamento temporal crítico como metodologia, e postula que é a radical separação entre passado e presente que possibilita a precisão e rigor científicos (Matos, 2001). E por isso, em sala de aula, nosso contato com a história se dá na tradução de anos, décadas e séculos em riscos traçados numa reta desenhada no quadro. Ao fincar, na reta, uma suposta totalidade e linearidade dos eventos, as pontas soltas devem ser encaixadas, cortadas: os coletivos e subjetividades, as resistências e sofrimentos são suprimidos, sovados. É deliberado o que ficará ou não gravado na memória de um povo. O que se quer aqui é deter o poder de narrar a história, e de aquietar perturbações advindas de um passado recente ou longínquo que possam fazer viver o remorso, a vingança, a consciência de atrocidades e violências (Michel, 2010). Para que torturados e torturadores vivam no mesmo bairro, para que uma mulher agredida pelo marido conviva com os familiares deste na Igreja, para que um indígena troque de farda e de turno com um ex-capataz (Da-Rin, 2019), para que um neto de escravizados e um neto de escravistas estejam na mesma reunião, um pé de igualdade tem de ser forjado, falseado. Em nome de uma suposta paz civil, o esquecimento é decretado: deve-se sufocar o que possa evocar perturbações, o que possa fazer tremular o chão da casa-grande, regurgitar a terra onde mil rostos sem nomes foram (e estão sendo) enterrados. Em nosso contexto, para pacificar os herdeiros de uma história alicerçada em violência e sangue, é escrita uma narrativa fundante da nação, e em tudo essa narrativa está ainda incrustada. A ânsia nesse escrito é o de, nas literaturas, tratar da subversão e clandestinidade da memória, abordar o perigo da história única consolidado pelo modo de historiar e pelas produções do esquecimento, e trazer as significações do narrar em seu caráter de transmissibilidade e de fazer emergir a heterogeneidade no viver o tempo. A recuperação da memória histórica, para Martin-Baró, implica na desideologização do cotidiano, no desvelamento de uma realidade violenta: puxar o fio do passado é seguir o rastro do que tornou possível a opressão passada e presente (Ansara, 2008). Para Ansara (2012), a memória oficial se propaga (nunca da mesma forma) na memória coletiva, costurando um amontoado de momentos, imagens e falas que são incorporadas e tornadas coisa nossa. E, na medida em que o experienciar o presente é perpassado pelo o que se sabe do passado, a ordem social vigente é legitimada. O ato de se debruçar sobre o passado é o de desnaturalizar o que é naturalizado, de entender os mecanismos que engendram as históricas injustiças e de lutar pela sua descontinuidade, pela sua não repetição. Trata-se de buscar no passado outros futuros. Na proposta de evocar a memória, a oralidade e no criticar história como sucessão unilinear de grandes eventos, não se quer do passado só o contexto geral, mas também seus personagens, os aspectos do cotidiano, o que revela a trama entre os sujeitos e seus lugares na história (Bosi, 2003). No narrar, quem narra se reconhece sujeito da história, da sua história. Para Coutinho (1997), o narrador lhe cede o fio da memória porque há alguém que escuta. Porque há escuta, ele encontra espaço e tempo para chamar o passado ao presente: é nesse ""entre"" que entrega o vivido, alinhava o rememorado ao atual e, no escutar-se, atribui sentidos. No “entre” quem escuta e quem narra, há intercâmbio. Do vínculo com o passado são feitas questões sobre o cotidiano, se extrai a força para reabitar o presente, construir futuros, sobreviver. É nesse sentido o habitar-reverberar-rememorar que Maria-Nova, em Becos da Memória, toma para si a sina de (...) narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos” (Evaristo, 2017, p. 177).
ANSARA, Soraia. Memória política: construindo um novo referencial teórico na psicologia política. Revista Psicologia Política, v. 8, 2008.
ANSARA, Soraia. Políticas de memória X políticas do esquecimento: possibilidades de desconstrução da matriz colonial. Revista Psicologia Política, v. 12, 2012.
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê, 2003.
COUTINHO, Eduardo. O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade.
DA-RIN, Maya. (Dir.). 2019. A Febre. Brasil.
EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Pallas Editora, 2017.
MATOS, Olgária. A narrativa: metáfora e liberdade. História oral, v. 4, 2001.
MICHEL, Johann. Podemos falar de uma política do esquecimento?. Revista Memória em Rede, 2010.
Palavras-chave: memória; história; resistência; esquecimento; manipulação