Anais do Encontro Regional Nordeste da ABRAPSO
VOL. VIII, 2022
PSICOLOGIA SOCIAL E PRÁXIS INTERSECCIONAL: DESAFIOS FRENTE À TAREFA DE RECONSTRUÇÃO POLÍTICA DO PAÍS
ISSN 2965-226X
Narrar a si, narrar o que há de coletivo nas dobras do pesquisar
Aline Kelly da Silva - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Simone Maria Hüning - Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
Jaqueline Tittoni - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Resumo: Pode a ciência ocupar-se da artesania da vida? De que modo narrar e pesquisar enquanto estamos num vórtice, vivendo a experiência da pandemia e constantes ataques à universidade brasileira? A tarefa da escrita e da produção de conhecimento que objetivamos compartilhar neste trabalho tem se deparado com tais questões. A pandemia de covid-19 escancara impasses das certezas tramadas em nome de um suposto progresso e desenvolvimento, que nos levam a questionar quais existências estão abarcadas no projeto de sociedade fundado em uma história colonial. A aposta feita no percurso de doutorado da primeira autora, ainda em andamento, é de um produzir um conhecimento sentipensante, em que ciência, afetos e memória sejam reconectados, como propõe Silvia Rivera Cusicanqui (2018). A obra dessa autora faz um convite para sentipensar onde os pés pisam e é a partir disso que buscaremos aqui narrar os (des)caminhos de um pesquisar feito na artesania da vida, em seus movimentos provisórios. Inicialmente, delineamos como proposta de pesquisa acompanhar percursos juvenis pela rede socioeducativa de Porto Alegre e de Maceió – cidades que compõem o caminhar durante o doutorado –, a fim de dar lugar às histórias de potência de vida produzidas em resistência às políticas de racismo e extermínio do Estado contra jovens negros. Nosso interesse, então, seria não olhar somente para a vulnerabilização e precarização das políticas, mas para o modo como jovens negros resistem ao racismo e reinventam suas vidas cotidianamente. Posteriormente, a partir de participação em eventos com jovens negras vinculadas ao poetry slam, nos aproximamos de uma discussão sobre as insurgências juvenis nos encontros entre arte e cultura. Nesse momento, durante a qualificação do doutorado, buscávamos transitar das políticas públicas estatais para um acompanhar e narrar como jovens mulheres negras produzem insurgências a partir de performances estético-políticas em dois coletivos de slam das cidades mencionadas anteriormente. Entretanto, também nos acompanhou neste tempo de pandemia a ausência de encontros presenciais e batalhas de rimas, o que repercutiu na maneira como estabelecemos contatos com as jovens slammers: de modo virtual, fluido e fugaz. Para além disso, a partir de encontros com autoras feministas negras e da participação da primeira autora deste trabalho em um coletivo feminista e antirracista, vinculado à extensão e pesquisa na universidade, passamos a questionar o processo de pesquisa direcionado a um outro (elas, as jovens negras do slam) e as possibilidades do narrar a si, enquanto mulher que se constitui como negra e feminista ao formar rede com outras mulheres negras no percurso de formação. Importante mencionar que, a partir da obra de bell hooks, passamos cada vez mais a experienciar encontros entre mulheres negras como um exercício de autorrecuperação e de afirmação de nossa voz na universidade. E, com isso, operamos uma dobra política e epistemológica, potente para narrar a si enquanto gesto político que coloca em primeiro plano a inscrição de corpos, experiências e conhecimentos de mulheres negras. Trata-se, então, de narrar a si no que há de coletivo, concebendo encontros entre mulheres negras no âmbito da universidade como politização de nossas dores e criação de comunidades de autorrecuperação, capazes de transformar as dores do racismo, sexismo e elitismo em potência criativa e autoafirmação. Assim, a escrita da tese continua a ter como questão de pesquisa a produção de memória nas resistências de jovens mulheres negras na luta antirracista e feminista, só que agora se deslocando do narrar um outro (supostamente alheio, tomando como objeto de pesquisa) para o narrar a si, a partir de uma micropolítica do corpo (Cusicanqui, 2018) e de uma política de escrita do cotidiano (hooks, 2019; Rodrigues & Silva, 2021), buscando narrar histórias sobre a reinvenção da existência a partir dos encontros com mulheres negras nos percursos de vida e formação. A produção de narrativas como estratégia metodológica parte de uma concepção de memória como ficção que nos inscreve na história do presente. Entendemos, com base em Silvia Cusicanqui, que a memória se constitui de modo vivo – não é um mero registro do passado e possui potência de descolonização e subversão. Nas brechas das zonas coloniais que se reatualizam em nosso tempo, a memória das nossas vidas e histórias acende uma fagulha incendiária no presente.
Cusicanqui, Silvia Rivera (2018). Un mundo ch’ixi es posible. Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires, Tinta Limón.
hooks, bell (2019). Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante.
Rodrigues, Luciana & Silva Aline Kelly da (2021). Por uma política de escrita do cotidiano: enfrentamentos ao racismo e sexismo na academia. In: Míriam Cristiane Alves & Alcione Corrêa Alves (Orgs.). Redes Intelectuais: epistemologias e metodologias negras, descoloniais e antirracistas (pp. 121-133). Porto Alegre: Rede Unida.
Palavras-chave: feminismos negros; narrativas; memória.