Anais do Encontro Regional Nordeste da ABRAPSO 

VOL. VIII, 2022

PSICOLOGIA SOCIAL E PRÁXIS INTERSECCIONAL: DESAFIOS FRENTE À TAREFA DE RECONSTRUÇÃO POLÍTICA DO PAÍS

ISSN 2965-226X

Ordem, progresso e fome: um debate à/da Psicologia Social brasileira durante o contexto neoliberal

Hermógenes Abraão Paz Siqueira - Universidade Federal do Ceará

Anderson Moraes Pires - Universidade Federal do Ceará

João Batista Moreira Sobrinhi - Faculdade Centro Mato-grossense

Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar e problematizar o atual cenário brasileiro no que corresponde à fome e/ou insegurança alimentar. As pessoas brasileiras lidam com a fome há muito tempo, mas experienciamos um aumento dessa problemática com a gestão de um governo com políticas neoliberais. Não é por acaso que Elza Soares, uma enorme artista, anunciava ter vindo do planeta fome. Haja visto que o cenário mundial se caracteriza pelo retrocesso no enfrentamento das tendências da insegurança alimentar e malnutrição, tem-se que no Brasil mais de 60 milhões de pessoas experimentam algum tipo de insegurança alimentar, o que corresponde acerca de três em cada dez brasileiros com dificuldades ao acesso de alimentos básicos (CATRACA LIVRE, 2022). Para a realização deste trabalho, recorremos às publicações jornalísticas que noticiaram a fome no cenário nacional, principalmente nos últimos anos, e aos dados fornecidos pelo Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo (SOFI, 2022), relatório anual elaborado por agências das Nações Unidas (FAO, FIDA, UNICEF, PAM e OMS) para informar o progresso das políticas de combate a fome, alcance da segurança alimentar, melhoria da nutrição e solução dos principais desafios (FAO, 2022). Outrossim, buscamos suporte na narrativa de Carolina Maria de Jesus no livro “Quarto de despejo: Diário de uma favelada”, escrito entre os anos de 1955 e 1960, visto a proximidade entre os relatos de suas experiências e o cenário de um governo com políticas semelhantes a gestão bolsonarista. O período de análise dos dados entre os anos de 2019 a 2021 qualificam traços importantes sobre o governo Bolsonaro: o retorno do Brasil ao mapa da fome está associado a fatores que culminam no aumento do custos dos alimentos e as dificuldades de acesso, dentre eles a crise econômica potencializada pela pandemia de COVID-19, as altas taxas de desemprego e inflação desenfreada. Carolina, mulher preta, mãe, autora, moradora de uma favela brasileira no estado de São Paulo, entre outras maneiras de apresentá-la, relata seus dias sem acesso à comida e também os poucos dias que tem acesso, mas à uma comida sem qualidade, o que no dizer popular pode ser denominado de “restos de comida”. Essa escritora, de maneira potente, relata seus dias fazendo com que a situação econômica e política do país apareça: “Eu quando estou com fome quero matar o Jânio [Quadros / ex-presidente], quero enforcar o Adhemar [de Barros / ex-prefeito de São Paulo] e queimar o Juscelino [Kubitschek / ex-presidente]. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos” (JESUS, 2014, p. 28). Para mais, deixa impresso a sua revolta diante à fome, diante ao descaso que o Estado tem para com a vida de pessoas que estão em situação de vulnerabilidade social. Nesse sentido, estabelecer um paralelo entre o cenário atual e os relatos de Carolina tornou possível dimensionar e exemplificar os critérios relacionados à insegurança alimentar de acordo com o relatório da FAO 2022: insegurança moderada, quando não se possui a certeza sobre conseguir alimento, com impacto sobre a qualidade e quantidade de alimentos; e insegurança grave, quando se enfrenta a falta de comida e o estado de fome. Dispõe-se em primeiro plano o sofrimento de Carolina e de tantas outras pessoas que estão em situação de vulnerabilidade alimentar, que passam fome devido ao não olhar estatal, à falta de políticas públicas efetivas. Nesse contexto, corrobora-se a afirmativa de que “O sofrimento é a dor mediada pelas injustiças sociais. É o sofrimento de estar submetida à fome e à opressão, e pode não ser sentido como dor por todos” (SAWAIA, 2001, p. 102). Compreendemos que a fome não é uma questão simples ou que deva estar alheia ao campo da Psicologia, mas sim uma realidade acentuada em governos que pouco se preocupam com o bem-estar integral da população, como ocorreu na gestão bolsonarista. Em razão disto, assim como Mbembe (2018) afirma, refletimos que podemos estar sob um regime necropolítico, isto é, um regime que destrói os corpos, que não só deixa a população morrer, como a faz morrer. Ademais, aprendemos que a dor sentida por pessoas que passam/passaram fome não é simbólica ou está no mundo das ideias; é uma dor real, que tem cor, etnia, gênero, região (geografia) e classe. É com o registro visceral do cotidiano de Carolina somado às políticas de morte do governo bolsonarista que temos dificuldade de apresentar este trabalho, pois sabemos que, enquanto estamos nos debruçando na literatura do real, há muitas pessoas morrendo porque não têm comida disponível. Deparamo-nos com um tipo de sofrimento humano que mutila o cotidiano, como diria Sawaia (2001). Por isso, cabe a nós, profissionais da Psicologia Social, colaborar com o avanço dessa discussão a fim de encontrar soluções, sobretudo, de encontrar possibilidades de vida.


Palavras-chave: Psicologia Social; Fome; Neoliberalismo.

Anais do Encontro Regional Nordeste da ABRAPSO